Uma realidade regional

Uma realidade regional
(Foto: Ilustrativa)

O nordeste brasileiro possui peculiaridades regionais e de formação territorial que foram geográfica e socialmente construídas. Diante da já antiga “indústria da seca”, pouca variação climática – com predominância do calor –, algumas famílias burguesas fazem uso, mando e desmando dessa região do país, ao seu “bel prazer”. Aspectos como coronelismo, provincianismo, assistencialismo e mais alguns outros “ismos” fazem dessa região dessa localidade um celeiro de atrasos sociopolíticos.

Diante desse quadro nada animador, cabe pensar se é possível reverter esse panorama de vícios e problemas, os quais dificultam a plena vida humana, e, identificar até que ponto as discussões traçadas em torno da relação entre federalismo e municipalização, na democracia do Brasil, contribuem para mudar essa não tão nova situação.

Importantes temas para vida político-social da região nordeste precisam ser sempre o “prato do dia”. Democracia, descentralização, desprefeiturarização (desburocratização), formação política, participação popular, disputa de espaços de intervenção social e conquista de ambientes políticos. Tantas são as questões que ocorrem em vias de alterar um painel de atrasos e arbitrariedades burguesas que carecem de serem tomadas com a devida importância nessa seara de dificuldades.

Ao hierarquizar, em nível de importância, os problemas dessa região, os climáticos são irrisórios em relação aos políticos e sociais. Tanto é assim que até são subordinados a esse último, pois as reflexões e desenvolvimento tecnológicos apontados já desde o século XVII, com o Iluminismo, apontavam que é possível conviver bem com intempéries climáticas, até porque se fosse diferente a humanidade não estaria viva para contar essa história. O que – não só – por essas cercanias se configura, de fato, como carência é, em maior grau, consciência e intervenção social para, de algum modo, forçar uma mudança de hábitos e tratos por parte de seus representantes políticos. Estes por seu turno, ainda que não consigam “reinventar a roda” da boa administração pública – comprometida eticamente com o social, sem vícios em qualquer âmbito, inclusive no federal –, podem – caso seja seu intuito, o que não parece ser – não integrar esse quadro de enriquecimento ilícito e de reserva de vagas para burgueses que está sendo, já há algum tempo, a política.

Ainda com toda discussão travada na ‘Constituinte’ sobre “deixar de ser ouvinte para ser atuante”, faz-se mister repensar com mais afinco a abrangência das federalizações e implementar, de fato, a municipalização. Tal ação, com o devido repasse de verbas para prestação dos serviços necessários –, esta que, por descentralizar o modo de atuar do poder público na resolução dos problemas sociais, pode mudar o povo de ‘vulgo’ para agente de sua própria mudança, sem que este seja culpabilizado individual ou coletivamente pelos insucessos que lhes são conferidos por terceiros, os quais se aproveitam do quanto esse povo é coadjuvante no filme de sua própria vida. É preciso ainda muita luta e intervenção social, comprometida com a mudança de vida desse povo sofrido e social e politicamente carente.

Panos quentes em corrupção, propostas de leis que não resolvem os problemas sociais e ainda os agravam – como é o caso da polêmica redução da maioridade penal e da terceirização dos serviços públicos –, bem como um sistema político oneroso e viciado para manter sempre as mesmas oligarquias e poucos aristocratas no poder: eis o cenário que se configurou quando o povo “deixou de dizer quem é que manda”, deixou de se manifestar, de modo contundente, acerca de seus interesses, deixou de lado o conhecimento de sua própria história para tentar eternizar o presente de aparências e de efemeridades. Em suma, deixou de olhar para o passado para entender o presente e projetar o futuro.

Este ambiente propício para inúmeras expressões da “questão social” – conjunto das expressões das desigualdades da sociedade fruto do capitalismo –, com particularidades só suas, tal como os “ismos” aqui já relatados, estas que levam a um receio coletivo e a um pragmatismo de querer ver mudança ainda quando estas não estão em processo de construção, com vontade, participação, suor – como é típico dessa região –, e demais características que ajudarão a construir uma realidade – não virtual – que não contribua para que este seja só um país do futuro, mas que, já no presente, se desenvolva. Pois caso os “ismos” por aqui se perpetuem sem a intervenção popular, esse tal futuro pode nem chegar por estas bandas.

É urgente voltar ao “primeiro amor”! Aquele que levava à ágora grega para discutir e disputar as melhorias para a sua localidade; aquele que manifesta o grau de pertencimento à determinada região e levava até a emprestar a sua própria vida em nome de um “bem comum”, tal qual ensejou Sócrates e escreveu Platão. Enquanto o individualismo, o medo, o receio de se indispor, a preguiça política, a falta de formação e participação popular reinarem, não parece ser possível engendrar um lote de melhorias para as vidas menos favorecidas dessa região “cabra da peste”, que convive diariamente com mandos e desmandos, com a fome, a falta de oportunidades e com a seca, mas não desiste de viver e de sonhar. Precisa, urgente, buscar transpor não seu rio, mas seus sonhos em realidade, sua potência em ato – tal qual teorizou Aristóteles. Como escreve Belchior em sua música “Bel-prazer”, do álbum “Todos os sentidos”, de 1978, cabe a essa realidade regional: “Libertar a carne e o espírito, coração, cabeça e estômago; […] o verbo, o ventre, o pé, o sexo, o cérebro: tudo o que pode ser e ainda não é. […] Não tem peito pra chorar. En la vereda tropical hay cana e canela e crecen las palmas […] achar ou inventar um lugar, tão humano como o corpo, onde pensar e gozar seja livre e tão legal: como razões de estado ou como fazer justiça; como palavras num muro ou escrever num jornal; entrar ou sair da escola, mulher-homem, homem-mulher; como luar no sertão, como lua artificial, como roupas comuns, como bandeiras agitadas. Festival estranho: festa, feriado nacional”.

Por Fernando Gramoza.